terça-feira, 8 de abril de 2008

Tornamentos

" A forma de identidade Eu = Eu (ou sua forma degenerada eles = eles) deixa de valer para as personagens e para o cineasta, tanto no real quanto na ficção. O que se insinua, em graus profundos, é antes o "Eu é outro" de Rimbaud. Godard dizia isso a propósito de Rouch: não apenas acerca das personagens, mas do próprio cineasta que, "branco exatamente como Rimbaud, também ele declara que Eu é Outro, quer dizer Eu um negro. Quando Rimbaud exclama "sempre fui de uma raça inferior... sou um animal, um preto...", é passando por toda uma série de falsários, "Mercador és um preto, magistrado és um preto, general és um preto, imperador velha sarna és um preto...", até essa mais alta potência do falso que faz que um negro tenha de se tornar ele próprio negro, através de seus papéis brancos, enquanto o branco nisso encontra uma chance de também se tornar um negro ("posso ser salvo..."). E, por seu lado, Perrault não precisa se tornar outro para se juntar a seu próprio povo. Não é mais O nascimento de uma nação, mas é a constituição ou reconstituição de um povo, em que o cineasta e suas personagens se tornam outros em conjunto e um pelo outro, coletividade que avança pouco a pouco, de lugar em lugar, de pessoa em pessoa, de intercessor em intercessor. Sou um caribu, um alce do Canadá... "Eu é outro" é a formação de uma narrativa de simulação que destrona a forma da narrativa veraz. É a poesia que Pasolini queria contra a prosa, mas que encontramos ali onde ele não a procurava, num cinema apresentado como direto."
Gilles Deleuze

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