segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

O Homem da Linha, de Jos Stelling


Uma relação improvável, em um lugar qualquer, entrecruza as linhas desviantes de personagens a deriva. Com uma narrativa anti-dialógica, Jos Stelling lança o ruído contra o verbo, em uma magnífica exposição do afeto e da natureza. Num bailar de devires, animalescos e pueris, o encontro do estranho agulheiro com a bela francesa faz descongelar o deserto, eletrizando o tempo puro dos espaços vazios e das imagens sonoras. A atmosfera gelada, a sonoplastia rítmica e as alternânicas de luz e de cor criam as nuâncias e densidades da topografia subjetiva dos territórios de passagem. Arrebator e sensível, “O Homem da Linha” é ao mesmo tempo a desconstrução poética dos signos lingüísticos e o amor louco de uma animalidade total.

Os Idiotas, de Lars von Trier


Filme-paradoxo, Lars von Trier coloca em cena os modos loucos de fazer cinema, arrebentando, de saída, com a castidade idiota do Dogma 95 e zombando de todos aqueles que acreditaram no seu pseudo-dogmatismo. Com uma câmera amadora e vertiginosa, as suas anti-locações são percorridas na construção descontínua de personagens aberrantes. Com uma crítica aguda, os valores burgueses são desnudados até a exibição pornográfica das intolerâncias micro-fascistas. Reinventando seu estilo a cada obra, Lars von Trier narra com “os Idiotas” a experimentação crítico-criativa de um grupo de amigos que simulam a doença mental como atitude política, questionadora das instituições e da moralidade. Em meio à multiplicação intempestiva da idiotia é impossível não se questionar. Quem está zombando de quem? E os verdadeiros loucos? Será que existem “verdadeiros loucos”? Olhar brilhante que problematiza a simulação de identidades, enquanto condição necessária, e a fragilidade do estatuto moral do normal e do patológico.

Santiago, de João Moreira Salles


À primeira vista parecia impossível se perder nele. À primeira vista..." Personagem labiríntico, mordomo da família Moreira Salles, o que subverte as condições do discurso documental. Passagem e ocasião de desencontros, Santiago exercita a fabulação, teatraliza seus gestos, desarticula as palavras de ordem, desenquadra o seu próprio autor. O que antes seria um filme pessoal e de montagem, se torna o palco de um grande combate. O filme que não foi feito. O Anti-metacinema. A arte-clínica pela culatra. O passado e o porvir de um cineasta em crise, o duplo de si mesmo rachado, desconstruído, arrastado no tempo próprio de uma ficção tornada vida. As mnemotécnicas de uma personagem fabulosa fazendo do exótico o apenas pouco, da reflexividade, só o reforço do mando. Na expressão de Santiago: "o tempo não tem consideração". Tempo trágico que "pelos caminhos contínuos entre as estátuas imutáveis e placas de granito no qual você estava, até mesmo agora, perdendo-se para sempre, no silêncio da noite, sozinha comigo.

Stromboli, de Roberto Rossellini


Stromboli por uma miséria terrível demais... Stromboli por uma dor intensa demais... Stomboli por uma beleza grande demais... Rosselini cartografa a ilha de Stromboli com o olhar estrangeiro que revela o mais profundo de uma violência para a qual não há mais ação possível. Planos sucessivos fazem um duplo movimento de criação e apagamento. A ilha ou a terra devastada é repetidamente preenchida por naturezas mortas de personagens cristalizados no limite de situações que excedem. O porto, a pesca, a tempestade, a erupção vulcânica... Uma situação-limite : a gravidade da pesca, o abismo da banalidade, a inanição existencial. Stromboli é um mapa de afetos, território e fissura de uma Europa que convulsiona imóvel diante do inominável da guerra. “Estou acabada, tenho medo, que mistério, que beleza, meu Deus” Stromboli é a tensão disruptiva que arrebata o pensamento com a exterioridade impensável do que só pode ser pensado.

Taxi Driver, de Martin Scorsese


A Nova York dispersiva é vista pelo retrovisor das lentes lentas do filme-fluxo de Scorcese. Táxi Driver é a balada-catálogo de todos os clichês psíquicos, todos os “chichês óticos e sonoros” da cidade-néon. A multidão perdendo os seus contornos, tornando-se necessidade de fuga, desconstrução do espaço, invenção de novos territórios sub-urbanos, extra-ações e infra-ações que esgarçam a fibra nervosa que encadeia as ruas, os personagens, os acontecimentos. Sem totalidade, mas com imagens flutuantes, é o acaso que se torna o único condutor. Toda uma série de “boas intenções” fadadas ao fracasso. Travis convida uma rapariga para uma saída e leva-a a um filme pornô. Travis quer ser amigo de uma prostituta menor e acaba por assustá-la. Travis hesita entre se matar e cometer um crime político. Como se os acontecimentos não lhes dissesse mais respeito, como se as ruas não lhes tivesse mais pertença, como se as irregularidades do trajeto não lhes fosse mais acidentes, como se as geografias das esquinas não lhes determinasse mais o itinerário, como se o que se julgava monotonia nunca deixasse de ser criação e como se onde só se via sempre “repetição”, nunca deixasse de ser diferença...